domingo, 1 de março de 2009


«Vem por aqui» -dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: «vem por aqui!»

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironia e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí!

Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se, ao que busco saber, nenhum de vos responde,

Porque me repetis: «vem por aqui?»

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas nossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide!

Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos,

E tendes regras, e tratadores, e filósofos, e sábios.

Eu amo a minha loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me de piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: «vem por aqui»!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se levantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

Sei que não vou por ai...



José Régio, Cântico Negro

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