domingo, 22 de fevereiro de 2009

Ela canta, pobre ceifeira



Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz talvez;


Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia


De alegre e anônima viuvez,


Ondula como um canto de ave


No ar limpo como um limiar,


E há curvas no enredo suave


Do som que ela tem a cantar.



Ouvi-la alegra e entristece,


Na sua voz há o campo e a lida,


E canta como se tivesse


Mais razões pra cantar que a vida.



Ah, canta, canta sem razão !


O que em mim sente 'stá pensando.


Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !



Ah, poder ser tu, sendo eu !


Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso !


Ó céu ! Ó campo ! Ó canção !



A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve !


Entrai por mim dentro !


Tornai Minha alma a vossa sombra leve !


Depois, levando-me, passai !



Fernando Pessoa

Sem comentários:

Enviar um comentário